quarta-feira, janeiro 12, 2005

Morreu o Profeta


Tinha nome de imperador romano: Domiciano. Foi-o nos campos ainda pelados, com o nome de guerra de Cavém. Eram tempos de semi-profissionalismo em que os apitos ainda não eram dourados, em que os árbitros não iam ao Brasil passar férias mas antes escolhiam a praia mais próxima. Eram tempos em que as claques não eram organizadas nem ameaçavam de morte os seus treinadores. Eram tempos em que, com uma nota de «quinhentinhos» podia-se sustentar uma família numerosa durante seis meses. Eram tempos em que os Martins eram verdadeiros santos e os Olegários aspiravam às benquerenças do povo. Em 1954, chegava ao Benfica um jovem de Alcobaça que tinha espalhado o perfume do seu futebol na 2ª Divisão. Actuava a extremo-esquerdo e impressionou Otto Glória pela sua rapidez. Depressa se impôs na equipa, mas com o passar dos anos, foi recuando no terreno. Na época 1959-60, quando Bella Guttmann trocou o FC Porto, descobriu em Cavém dotes de lateral-esquerdo. Era temperamental quanto baste e até nos treinos brindava colegas com insultos quando não lhe endossavam o esférico nas melhores condições. Numa equipa em que faltavam estrelas, derramava suor e incentivava os seus colegas. No dia 2 de Maio de 1962, disputava-se a final da Taça dos Campeões. O Real Madrid era o claro favorito mas o Benfica era o campeão europeu em título. Na véspera do jogo, Guttmann ordenara que todos os jogadores se deitassem às nove e meia em ponto. Cavém custou a adormecer, estava agitado. O mister tinha-lhe dado uma tarefa quase impossível: marcar Di Stefano, provavelmente o melhor jogador do Mundo à época. Quando adormeceu, sonhou com uma figura profética e misteriosa que lhe deu conselhos sobre como secar a estrela hispano-argentina. Seria Deus? Cavém nunca o admitiu para evitar polémicas com a Santa Sé. Afinal, toda a gente sabe que Deus é benfiquista e Satanás veste de azul e branco. Quando o jogo acabou, o Benfica venceu por 5-3. Consta que Di Stefano raras vezes tocou na bola…
Foi 9 vezes campeão nacional. Duas vezes campeão europeu. Ganhou quatro taças de Portugal. Pelo seu clube de sempre. De sempre e sempre. O Glorioso. A velhice encontrou-o humilde, quase olvidado. Mas volta e meia, era presença constante em festas das Casas do Benfica onde os netos puxavam pela manga dos avôs e perguntavam «Quem é aquele senhor?» Ao que os avôs respondiam: «Aquele senhor era um jogador que ganhava cem escudos por mês e que jogava em qualquer posição do terreno, às vezes com um dedo do pé partido ou com um joelho torcido». Cavem é como o Benfica. Por muito que o ataquem, será imortal. Obrigado, Domiciano.

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